sábado, abril 01, 2006

CRÓNICAS DA RODA GIGANTE



Este é um dos muitos livros e autores de todos os quadrantes que irei publicanco neste blog , que irá de A a Z em termos de posturas, sejam elas posturas políticas , económicas, humorísticas , abordagens mais sérias , outras não tão sérias , todas com um elo comum...

Simplesmente , de alguma forma , tocarem-me , quer pelo seu lado humorístico , quer pelo seu lado sério, quer pelo belo , quer pelo feio ...mas tocarem-me.

Por um simples acaso inicio com este autor , porque está , nestes dias , entre aqueles que "dormitam" ao meu lado, na mesa de cabeceira junto com mais uns quantos que desfolho de vez em quando , até voltar, após algum período de tempo , ao seu lugar na prateleira, enquanto recolho mais uns quantos , para juntar á pilha que comigo tem coabitado sempre a meu lado , desde que me conheço por gente.

Como podem ler , pela capa que aqui é reproduzida , esta é uma obra de Ernesto Lara (filho) , nascido em Benguela , Angola, em 1932, tendo morrido no Huambo em 1977.

Irmão de Alda Lara e Lúcio Lara , respectivamente poetisa e "histórico" do MPLA .

Esteve preso pelas autoridades coloniais, que o acusaram de actividade subversiva.

Gostava da boémia e praticava o bom humor permanente, numa atitude crítica corrosiva.

Poeta avesso a honrarias , rejeitando espartilhos estéticos , em favor de gestos poètico e pessoais de rebeldia , amigo do diálogo e da simplicidadee leveza , sem ligeireza mas sim com sentimento , que lhe advinha do seu carácter, da sua comunicabilidade , vivacidade e itinerância.

(Pequeno resumo biográfico incluso na obra por Pires Laranjeira ) .

Mas mais será dito sobre esta figura , ao longo deste blog.

Para já, inicio as" Crónicas da Roda Gigante", compilação das escritas no "Jornal de Angola(entre outros) entre 1956 e 1958, com pequenos excertos desta Obra , que me delicia e funciona como "nave do tempo e do espaço" levando-me aonde o poeta quer...

EXCERTO DA CRÓNICA 25 ( pag. 108)

"Certa vez um cozinheiro bailundo, meu amigo, sentado num banco de bimba à entrada da cozinha, disse-me:

-Menino , os quiôco tem uma história que diz assim : « Os águia vôa muito arto, mas tem de baixar pra comer...» .

Nunca mais esqueci o provérbio do velho cozinheiro que se embriagava todas as noites de sábado e se sentava ao entardecer à entrada da cozinha, num banco de bimba.Sem nunca o ter esquecido , hoje, mais do que nunca , ele acode, vivo, ao meu pensamento, num momento agreste , difícil, da minha vida.

Fui águia e penso que me esqueci de baixar para comer. [...] "

( E continua...)

EXCERTO DA CRÓNICA 20 ( pag 100)

"[...] Chora, terra bem amada, pelo filho que partiu. Deixaste-o amar demasiadamente a terra. Deixaste-o rir com muita alegria enquanto a água escorria por entre os seus dedos. Consentiste que ficasse calado , silencioso naquelas tardes maravilhosasem que ele contemplava o sol poente tingir de fogo a anhara. Deixaste-o correr mundo, deixaste-o agitar-se demasiadamente quando as aves da sua aldeia se puseram a cantar. Deixaste-o dedicar-se de todo o seu coração aos montes e aos vales que o viram nascer. E agora ele, cheio de medo, está despojado de tudo aquilo a que se entregou demasiado. [...] "

EXCERTO DA CRÓNICA 9 ( pag. 42)

"Estar alegre em mim é função. Estar alegre em mim é orgânico. Estou alegre assim como se come , se bebe ou se assobia caminhando no passeio de uma rua. Sou alegre por natureza. Gosto dos pardais vadios dos telhados lisboetas - mas gosto mais do beija-flor barulhento das acácias angolanas. Gosto das noites de frio e de luar da capital - mas gosto mais das noites de Benguela, das noites passadas estendido na praia comtemplando o luar quando morre lá no Sombreiro. Gosto das meninas que descem o Chiado equilibrando-se maravilhosamente nuns saltos microscópicos - mas prefiro o andar dengoso e suave das mulatas da minha terra.

Também gosto das crianças. Das crianças alegres como eu. Ser criança e triste , é raro . Mas há. Alegria, aliás, é coisa que ninguém compra. Eu, cá por mim, posso vender disso. Os meus credores - e já foram tantos, ainda são tantos - sempre tiveram que enfrentar a minha alegria transbordante nas manhãs luandenses, benguelenses, malanginas, o meu « apareça sempre que é benvindo» , que me surge dos lábios a cada instante. Espontâneo. Mais orgulhoso e altaneiro do que o baobah dos caminhos que cruzam nos Muceques, mais orgulhoso e altaneiro do que a mafumeira do quintalão do Morais Pontes , lá embaixo, em Benguela , onde as gralhas fizeram ninho , essa bela árvore que por este tempo deixava cair uma chuva de chipipa sobre os capacetes de quem passava na rua. Sou alegre . Gosto das crianças . [...] Voltando às crianças. Uma delas - o Tony - apareceu-me um dia destes com um conto de Natal. Ele tem 9 anos. Queria que eu , como jornalista , o lesse e criticasse. Que dissesse se estava bom ou mau . Era para a Escola. O Professor tinha mandado fazer redacção em casa. Tema : « Conto de Natal » . o Tony escreveu :

« Era uma vez um peru. Aquele peru tinha um inimigo . Esse inimigo era um homem com uma faca. Um dia tiveram uma luta e o homem ganhou . FIM »

Gostei do conto. Sinceramente. Felicitei - o. Afaguei - lhe a cabeça e comprei -lhe uns rebuçados. Jamais li um conto de Natal que me tivesse comovido tanto . Está ali um jornalista, em embrião . Sincero , honesto, puro . [...] "

PESSOAS E COISAS ( coluna do "Notícia" , entre 1962 e 1963 ) (pag 199)

«O PSIQUIATRA»

"Um dia destes eu fui ao psiquiatra. Tipo chato , dirão vocês , leitores amigos que bem me conhecem, que temos nós com isso ? Lá vamos, lá vamos.

Cheio de receio expus-lhe as razões porque o procurava . Não me sentia própriamente maluco , mas tantas vezes tinha ouvido dizer aos outros que eu o era , que resolvi consultar o psiquiatra. Em caso afirmativo , eu iria para uma espécie de Arles qualquer . A primeira grande desilusão veio do psiquiatra , que , depois de conversar comigo mais de duas horas , me disse :

- Sabe ? Entre os médicos psiquiatras , há uma regra : normalmente os neuróticos é que procuram o psiquiatra ; os psicopatas fogem dele como o diabo da cruz !

Quer dizer , só por ter procurado o psiquiatra fui logo demitido de maluco . Com pena , aliás, da minha parte , diga-se de passagem. É que para mim , nos momentos que vão correndo , a coisa mais cómoda , de momento , o melhor emprego era esse - ser maluco , doido, demente , tarado !

Infelizmente o psiquiatra demitiu - me . Até esse. "

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